DE
CANJICAS A COXINHAS
Em O Alienista, além dos limites
entre razão e loucura, Machado de Assis ironiza a política na
sociedade de seu tempo como simples soma de interesses dos
particulares. Por isso, quando surge o menor dos embates seus
partícipes preferem a resignação, como fez o líder barbeiro ao
sair da cena pública e deixar o movimento das Canjicas sem a sua
cabeça.
Uma obra tem valor universal ao
atravessar as eras e dialogar com as gerações futuras. Mas, para
recordar a indagação do crítico Antônio Cândido, o que O
Alienista de Machado teria para nos dizer nos dias de hoje? Quem são
as Canjicas de nosso tempo?
UMA
COXINHA EM DOIS ATOS
Ato I–
comédia
–
de como as
coxinhas foram às ruas
“Garota,
eu vou pra Califórnia...”,
cantarolava ao sair do banheiro.
Tomou um
café reforçado e lá se foi,
todo brasuca da silva. Da silva não porque era Smith desde
pequenino.
“...
o
meu destino é ser star”,
cantarolou uma vez mais pouco antes de se juntar a multidão. Ele
tava que tava:
Bumbum
redondinho como a base de uma coxinha. Vuvuzela amarela na mão
esquerda, vez ou outra assoprada em saudação àquela gente bonita.
Bandeira da pátria amarrada ao pescoço e caída sobre as costas –
um Clark Kent dos trópicos. E nem mesmo esqueceu-se da cartola: uma
réplica da do Tio Sam com gomos intercalados em verde e amarelo.
Porém, agora a canção já era outra:
“Sou
brasileiro, com muito orgulho...”, engrossou
o coro, todo senhor de si.
Dessa
vez jornalistinha algum iria pegá-lo desprevenido, dizia com seus
botões: o lábaro,
a flâmula
e o impávido
estavam na ponta da língua. Um papelzinho no bolso era sua
retaguarda. Brasileiro por tinta e papel.
Não
era de confusão. Nem de se meter em política. Na verdade, detestava
política. Porém, a coisa agora era diferente. Via que não estava
só. Que havia muitos iguais a ele, ainda que não entendesse que no
mesmo ato uns gritassem contra o Estado e outros clamassem por um
Estado forte. O importante é que ali eram todos iguais: uma gente
feita de carne, osso e botox. Gente pacata, ordeira e com impostos em
dia. Gente que não levava desaforo nem DVD pirata para casa. Gente
que se rebelaria um dia. E esse dia havia chegado. Saga registrada
para ser contada às futuras gerações:
-
um dia seu pai foi um rebelde, meu filho! – devaneou por segundos
com filho imaginário ao colo e sorriso congelado por mais uma
selfie.
Ato
II -
tragédia
– do conflito entre coxinhas
Hoje
o dia prometia. Momento de resistência. Não teve dúvida. Os anos
de escritório davam-lhe garantia. Estufou o peito, dirigiu-se ao
patrão e pediu uns dias das férias vencidas. Queria se somar aos
revoltosos que bloqueavam a Avenida Paulista, justificou. Pedido
aceito.
Rumo
à Paulista lembrou-se das gafes na última manifestação. Gafes que
não poderia mais cometer. Mas como ia saber? No movimento as coisas
são dinâmicas. Tudo pode mudar a qualquer momento. Senão, vejamos.
Numa
manifestação o grito era:
Somos milhões de cunhas!
Na outra, feriado prolongado, viajou e perdeu o protesto. Na
terceira, tentou puxar o coro do somos todos cunhas e quase foi
linchado. Depois descobriu que o nobre deputado já não era tão
nobre assim. Coisas da política.
Agora,
ali, junto aos seus, o clima estava tenso. Havia ordens para
retirá-los.
-
Resistir! Resistir! Bradava os mais eufóricos. Gritos que logo se
tornariam seus.
Não
acreditava que seu governador desse ordens contra quem enfrentava o
governo federal nas ruas. Eles, os verdadeiros paulistas. Eles, os
não vagabundos.
-
E a polícia? Indagava a si mesmo.
-“Policial
é meu amigo. Mexeu com ele, mexeu comigo”. Ainda retinha fresco na
memória o grito de guerra e as selfies tiradas junto a policiais nas
manifestações anteriores. Será que eles teriam coragem? Não. Eles
são do bem, concluía em pensamento. E pensava outras coisas mais:
de como entrou no movimento. De como teve que jogar fora as camisas
(e mesmo sua cueca preferida) apenas por serem vermelhas. Minha
bandeira nunca será vermelha! Passaria a reproduzir o brado em pouco
tempo.
Por
vezes sentia saudades do passado. Coisa estranha. Ainda que fosse um
passado recente, intuía que não haveria volta no tempo. Tempo em
que viajava aos States. Ah, Estados Unidos da América – balbuciava
num sonho acordado.
Terra
da liberdade. Terra da Disney. Terra de verdadeiros shoppings e
varejo de coisas boas a encher sacolas para depois esvaziá-las no
retorno à pátria. Incremento financeiro reduzido a nada com o
incentivo ao crédito e surgimento da tal emergente classe C. Ela
evaporou-se, é verdade, mas não sem antes abarrotar os aeroportos
do país para ir inflar os produtos americanos. Gente demais.
Produtos de menos. Preços lá em cima.
Maldito
sapo barbudo! Eis o seu ódio. Ódio que pulou da divagação para a
realidade, tornando tragicômico o desfecho do ato.
O susto foi grande e o devaneio interrompido. Tempo não houve para
muita coisa.
-
Que absurdo! Onde estaria o respeito, o patriotismo? Berrou em
direção aos policiais. Logo ele que protestava contra os corruptos
da Lava jato receber um jato d’água no ouvido! Isso não ficaria
assim! E passou a gritar: Fora petistas! Fora petistas! Fora
petistas!
E
numa outra versão: Petistas de fardas! Petistas de fardas! Petistas
de fardas!
Nada
adiantou. Novamente foi encharcado. Apavorado, ainda pediu ajuda:
Socorro, FIESP! FIESP, socorro! FIESP socorro! Socorro FIES...
Não
houve socorro. Sequer um pato respondeu quenquém. Houve, sim, mais
um jato d’água, forte e concentrado que o pegaria em cheio. Cheia
estava sua cabeça enquanto ele rolava pelo chão. Nela tudo ia se
misturando: situação e oposição; lava jato e jato d’água; sim
e não; impeachment e minha família; super herói da justiça e
super herói dos quadrinhos, STF e FDP; japonês da federal e japonês
virtual. Tudo, tudo conformando uma só pasta que ele já não sabia
distinguir muito bem.
Como
teria saído daquela enrascada ele não sabia ao certo. O resfriado o
deixou acamado por dias. Por sorte não foi H1N1. Viu pela TV imagens
da Avenida Paulista com uma dezena de barracas vazias. Vazia estava a
sua mente. Ele nunca mais quis enchê-la com coisas de uma juventude
outrora rebelde. Amanhã é dia de batente, pensou, virou pro lado e
dormiu.
10/05/2016,
Carone.
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