domingo, 31 de janeiro de 2016

NASSERÁ


De Cesare Battisti
Tradução Rafael Alves

Antes de Nasserá, minha reputação no bairro se resumia a subir e descer as escadas do meu prédio para abastecer-me, minha única preocupação, e única percepção possível de mim. Era certamente um deprimido, mas não sabia. Contudo, como eu pagava em dia todas as minhas contas, garantia um “bom dia” de meus vizinhos, incluindo os mais antipáticos, que agora me achavam inofensivo e finalmente apagaram de seus olhares esquivos a palavra ‘parasita’. Além disso, desfrutava de um pequeno conforto, um quitinete herdado, combinado com um certo talento na arte de driblar obstáculos para conseguir auxílios sociais. O que me permitia levar uma vida longe do estresse das ambições.
Depois de Nasserá, passei a tomar trens, um após o outro, porque a cada chegada via apenas uma boa razão para ir ainda mais longe. Longe dos prazeres da decomposição, e recomposto nos caminhos do inferno. Como Nasserá, que havia fugido da África. De qual país africano? Que importância tem isso, quando qualquer africano pobre tem que fugir, mais cedo ou mais tarde, de sua própria terra? Os meus fones de ouvido diziam... “Escute o que diz o vento, my friend o vento vai responder”... Quando a minha vida ia se fundir à dela. Antes, eu não imaginava que na rua existissem pessoas sem direito de ir e vir, e nunca tinha visto uma mulher escapar da polícia tão graciosamente. Ela não correu, mas seu corpo emanava uma força que moveu o ar. A baguete caiu de minhas mãos quando me desesperei para abrir a porta do prédio.
Ela tinha as maçãs do rosto salientes, o nariz bem desenhado e o cabelo cortado como o de um rapaz. Sabia onde encontrar os testículos de carneiro para preparar o Mako-Mako, delicioso, mesmo sem o fígado de dromedário. Sua voz era tão doce quanto seus suspiros. Mas ela estava ferida, não apenas na mente, mas também em seu corpo. Ela fez amor comigo no escuro porque tinha vergonha de seu corpo mutilado pelas agulhas das megeras que procuravam a marca do diabo. “E elas descobriram a marca?” Um fanático sempre encontra o que procura; em Nasserá havia dezenas.
Fugir. Salvar a vida, sua liberdade de ser mulher opositora do apedrejamento daqueles que ousavam aventurar-se, em sua aldeia, para ensinar o perigo da Aids.
Nasserá, bruxa para alguns, adultera para outros. Aqui, imigrante ilegal.
Eu nunca frequentei muito cinema até conhecer Nasserá. Ela tinha um método infalível para evitar longas filas nos guichês: "Se há muita gente, o filme não é bom." Sempre na fileira da frente, levantava a cabeça como se a tela fosse um céu palpitante. E ela planava. De repente, entre uma exclamação e um suspiro, voltava um instante para mim com um beijo na bochecha. Estava eu apaixonado? Hoje eu revivo em pensamento essas palavras que me levaram a construir uma armadura de indiferença que sempre carregarei.
Nasserá podia ler minha mente, curou minhas dores de cabeça pousando a mão esquerda sobre meu ombro. "Você é uma bruxa?" Sua risada ressoou na sala como mil sininhos. Guillaume, meu vizinho, não gostava de mim. Ele era primo de um do secretário de segurança e tinha muita sensibilidade auditiva. Tornava-se cada dia mais intolerante. Seus gerânios adoeceram, envenenados, disse ele. Nasserá o evitava, eu me ria.
Eu odeio croissant de chocolate. Nasserá adorava. No saco de pão eu levava dez. Caíram de minhas mãos quando o porteiro me disse que ela tinha sido levada pela polícia. "Onde?" Corri. Como barata tonta, esbarrava nos muros do cinismo erguidos no anonimato das instituições. O silêncio antes da infâmia: "Vá para casa, senhor, ela se enforcou."
Voltei. Como verme em seu casulo.
O coração envolto em névoa, fazia minhas malas quando os bombeiros descobriram o corpo de Guillaume, meu vizinho, o primo do secretário de segurança. Morto, enforcado.
Hoje sempre volto à pergunta que um dia fiz à minha pequena clandestina: "Diga-me Nasserá, você nunca teve medo da morte?" Ela então olhou-me com seus olhos negros admirados: "Quando se morre, tem-se muito mais a fazer do que pensar sobre a morte...". Nunca tinha pensado nisso, mas agora penso.
E em toda estação ferroviária eu não vejo outra coisa, pessoas morrendo sem se dar conta.

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